O vórtice

Ao despertar Emílio virou-se para Glória e perguntou se havia roncado.

– Desculpe. É que ronco quando fumo muito – justificou-se.

Glória o acalmou. Disse que tinha dormido bem e não ouviu nada. Mas estranhou a pergunta. Emílio não acreditou muito na resposta, pois sabia que roncava alto.

Emílio despertou e olhou para Glória. A jovem universitária que conheceu na noite anterior. E que noite. No caminho da casa de Glória os dois davam bom dia para todos os transeuntes que passavam. Num mantra transloucado de alegria e histeria.

Levantou-se e lavou o rosto. Deu um beijo em Glória, despediu-se. Cuidou para não pisar no Spitz Alemão que ornava a sala. O cachorro latiu. Desceu, e rumo à saída do prédio encontrou com o porteiro.

– Bom dia! – Emílio cumprimentou o homem.

“Seria o último bom dia alegre deste novo dia?” “Será que estava um maltrapilho?” Os pensamentos inseguros invadiam sua mente. Principalmente ao notar a feição indiferente do porteiro.

E lá estava Emílio novamente na cama de Glória, virando-se e perguntando se havia roncado. Alguns passos depois dava bom dia ao porteiro e logo estava no táxi.

Não conhecia São Paulo. Tinha visitado a maior cidade do país havia mais de cinco anos. Na época ainda era um rapaz de botas.

Emílio já não calçava botas, porém mal sabia onde estava. Ele precisava chegar até a casa do amigo onde estava hospedado.

– Por favor, leve-me ao bairro Pinheiros, próximo do cemitério – Orientou ao taxista. – É longe?
Temia não ter dinheiro para chegar ao destino. A farra da noite anterior fora estrondosamente cara. Não pelos bons dias histéricos, ou pelos cigarros fumados, mas pelo desapego. E como a vida passa ligeira quando desapegamos, não é mesmo?

– Vai dar uns 30 reais no máximo, doutor – garantiu o motorista iniciando a viagem. – O senhor não parece ser de São Paulo. Viajando?

Emílio estava realmente preocupado com o dinheiro da corrida. Era seu último dia em São Paulo. Chegara quatro dias antes. Visitara a pinacoteca e andara de metrô. Metera-se com uns tipos esquisitos em uma praça. Jurara amizade eterna cujas pessoas nem lembrava o nome. Emílio, oriundo de uma pequena capital ao sul havia se vislumbrado com São Paulo. Paixão pela cidade de seu pai. Quebrou a banca.

Lembrou que ao chegar a Guarulhos perguntara quanto sairia o translado até o Shopping El Dourado. O motorista da condução o informara que o preço era 50 reais. Ao reclamar da tarifa ouviu: “Aqui é São Paulo, meu”. Essa lembrança o levou a insistir em perguntar ao taxista se seria mesmo 30 reais a corrida. Antes de ouvir a resposta, “Relaxa, doutor. Trintão resolve sim”, estava novamente na cama de Glória.

Virou-se.

– Ronquei?

Levantou-se. Lavou-se. Caminhou. Cumprimentou e saiu. Apanhou o taxi. Pagou, desceu e chegou em frente a casa do amigo. Pensou: “Puxa vida! Como vim parar aqui em três linhas? Uns 210 caracteres?! Que loucura”.

– É que a vida passa rápido quando a gente abrevia os pensamentos – explicou o amigo enquanto abria o portão. – Que farra ontem hein, Emílião! Por onde andou? Mas isso não importa. Vá se arrumar que vamos para o show. A vida não para.

Logo era noite. Lembrou daquele filme, em que a moça diz que fica imaginando na forma como as coisas acontecem?! “Primeiro vem o dia. Tudo acontece naquele dia. Depois a noite, que é a melhor parte. Depois vem o dia outra vez. E vai e vai e vai. E é sem parar”.

Foi neste instante que compreendeu que estava em um vórtice. Que voltava para o mesmo lugar, a cama de Glória. Depois da gloriosa noite em que cumprimentou milhões de paulistanos. Depois de fumar e beber em demasia. Depois de gastar as botas de suas economias. Depois de roncar. Acordar. Escapar ao latido. Passear de táxi. Restava ainda uma noite.

Foi quando lá estava Emílio em meio a multidão no show. Avistou Glória às 23h23. Então se questionou se deveria ou não falar com a garota. Afinal ela era testemunha de que roncava.

Emílio despertou. Virou-se e viu: Glória!

– Ronquei?

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